Karina Cedeño   |   24/07/2018 16:00

Turismo em excesso – parte 2: cidades podem perder 'patrimônio'

A segunda reportagem traz a visão de especialista do setor de cruzeiros, Marco Ferraz

Geralmente o overtourism ataca primeiro as cidades menores, com infraestrutura limitada para seus moradores, mas que são invadidas por turistas apressados em determinadas épocas do ano.

A segunda reportagem especial da série Turismo em excesso traz uma nova discussão. O Brasil ainda está longe do sonho e do pesadelo de lidar com esse fenômeno, mas quem nunca foi passar férias na praia e teve que lidar com falta de água, fila em caixas eletrônicos e engarrafamentos absurdos? Isso é overtourism, além de descaso político.

Um destino que esteve ameaçado pela imagem de viagem popular e de adolescentes foi Porto Seguro, na Bahia. A cidade teve de trabalhar outros nichos, criar novos polos de lazer e diversificar a oferta para fugir dessa pecha negativa. Estava longe do overtourism, mas mais perto de uma imagem desgastada ligada a uma viagem barata e de pouca qualidade.

Flickr/Hernán Piñera
Os turistas asiáticos aproveitam Veneza no melhor
Os turistas asiáticos aproveitam Veneza no melhor "estilo turista": com fotos e o passeio de gôndola
No lado oposto, um destino que não chegou a sofrer com isso pois tomou as medidas certas: Fernando de Noronha, em Pernambuco, que limita o número de visitantes, cobra taxas maiores de quem fica mais tempo, e tem toda a infraestrutura turística controlada.

Há quem queira mais (e também nos parques nacionais do País), mas pelo menos estamos partindo de uma visão consciente do que o Turismo pode agregar (de bom e ruim). O Brasil em relação ao overtourism está entre o “quem me dera”, pois nossos números estão muito aquém de qualquer cidade bem visitada, e o “ainda bem”, pois isso pode nos ajudar no planejamento futuro.

LEIA AS DEMAIS EDIÇÕES ABAIXO
TURISMO EM EXCESSO - PARTE 1: DEUS ME LIVRE OU QUEM ME DERA?
TURISMO EM EXCESSO - PARTE 3: ALÉM DOS GRANDES DESTINOS
TURISMO EM EXCESSO - PARTE 4: O PAPEL DAS AGÊNCIAS E OPERADORAS

Já a subpopulada e superturística Veneza é uma das cidades europeias que recebem grande volume de cruzeiristas, fato que preocupa a Unesco, considerando que o frágil ecossistema da lagoa local tem sofrido danos por conta da erosão do lodaçal e da perda de sedimentos.

O resultado disso é que o destino italiano corre o risco de perder o status de Patrimônio Mundial da Unesco, que está ameaçando colocar a cidade na lista de locais em perigo. O World Monument Fund também colocou Veneza em sua lista de observação em 2014 justamente porque “cruzeiros de grande porte estão levando a cidade a um ponto de inflexão ambiental e prejudicando a qualidade de vida de seus cidadãos”.

O destino possui 54 mil habitantes e recebe 30 milhões de visitantes por ano, sem contar que o número de moradores vem diminuindo. Grandes navios já estão proibidos de passar pelo canal principal de Veneza e outras medidas virão. Os moradores chegam a protestar e exibir cartazes de repúdio ao turismo quando chegam os navios. O mesmo ocorre na Espanha, com pichações que visam assustar e afugentar os visitantes.

MAIS NAVIOS
A cidade de Dubrovnik, na Croácia, é outra que vê com preocupação o overtourism e os navios de cruzeiro. O local ficou ainda mais conhecido depois que a série Game of Thrones foi filmada lá, e em agosto de 2016 mais de dez mil visitantes compraram ingressos para caminhar pelas famosas muralhas da cidade em um único dia.

Como resultado disso, o calcário bruto da rua principal da Cidade Velha foi polido por milhares de sandálias de dedo ou com acabamento de madeira, tornando o piso escorregadio quando molhado, o qual tem que ser trabalhado manualmente todos os anos antes do verão por martelos afiados para criar maior aderência e uma textura resistente a acidentes.

Reprodução/Tripadvisor
A cidade de Dubrovnik, na Croácia, foi
A cidade de Dubrovnik, na Croácia, foi "descoberta" após Game of Thrones
Não à toa, a Unesco também ameaçou remover o status de Patrimônio Mundial da cidade, a menos que ela reduza a quantidade de turistas que recebe. O recomendado é que o destino restrinja o número de visitantes a oito mil por dia, mas o prefeito Mato Frankovic foi além e estipulou a redução para quatro mil turistas por dia até o ano que vem, afirmando que a cidade precisa ser "redefinida".

“Perderemos dinheiro nos próximos dois anos - um milhão de euros, talvez cortando o número de turistas - mas, no futuro, vamos ganhar muito mais. Nós merecemos ser um destino de alta qualidade”, comentou o prefeito Frankovic ao site The Telegraph.

Dubrovnik também pretende lançar, até o final deste ano, um aplicativo de smartphone que permite aos usuários saber quando a Cidade Velha está lotada, sugerindo locais alternativos para a visitação. O destino também tem em seus planos testar um compartilhamento de carros para atrair turistas às áreas vizinhas.

Só no ano passado a cidade recebeu 742 mil passageiros em 538 navios de cruzeiro. Ao mesmo tempo em que geram picos de visitação a Dubrovnik em apenas algumas horas, esses visitantes contribuem pouco para a economia local, já que têm tudo à disposição nos navios e costumam desembolsar pouco em suas visitações à cidade.

AUTORIDADES PRESENTES
Porém, nem tudo está perdido, e a Cruise Lines International Association (Clia) vem trabalhando junto a todos os destinos citados acima para reduzir os impactos do overtourism.

No caso, de Dubrovnik, a Clia atua em estreita colaboração com o prefeito da cidade para garantir que o turismo sustentável continue estimulando o crescimento econômico da região. Durante a temporada de 2018, a associação de cruzeiros programou horários de chegada e partida que ajudam a aliviar o congestionamento no Pile Gate da Cidade Velha.

A Clia também está atuando com o prefeito e sua equipe no programa Respect the City, que promove a preservação do patrimônio e da cultura de Dubrovnik, educando os turistas sobre comportamentos adequados e respeitosos. “Também estamos colaborando com operadores de Turismo locais para desenvolver novas rotas e programas que incluam atrações fora da Cidade Velha”, conta o presidente da Clia Brasil, Marco Ferraz.

Juntamente com o trabalho realizado com o prefeito de Dubrovnik, a Clia formou um grupo de trabalho em Barcelona, unindo a Clia Espanha, o Porto de Barcelona e o departamento de Turismo da Prefeitura de Barcelona para analisar diferentes soluções para os desafios da cidade, que incluem informação sobre a contribuição da indústria de cruzeiros, oportunidades para amenizar possíveis desconfortos e desenvolvimento de atrações alternativas em áreas menos congestionadas da cidade.

Em Veneza os projetos também já estão a todo vapor. “As companhias de cruzeiro, representadas pela Clia, já anunciaram que estão prontas e dispostas a levar navios para fora do Canal Giudecca. Para facilitar, as armadoras colaboraram com as instituições italianas na rota alternativa, fazendo análises e simulações que identificaram o Canal Vittorio Emanuele como a melhor solução”, conta Ferraz.

Emerson Souza
Marco Ferraz, da Clia, é autoridade no assunto de cruzeiros
Marco Ferraz, da Clia, é autoridade no assunto de cruzeiros
Para ele, o overtourism é um desafio que deve ser tratado coletivamente por toda a indústria de viagens.

“Por conta do seu tamanho, os navios de cruzeiros tornam-se alvos quando se discute o excesso de pessoas em um destino. No entanto, a indústria de cruzeiros é apenas uma pequena parte dessa questão, que é enfrentada por todo o setor turístico”, comenta o executivo, lembrando que todas as formas de viagem - aeroportos, estações de trem, hotéis e portos de cruzeiros - têm impacto na infraestrutura e na estética da cidade.

“Os cruzeiros assumiram um papel de liderança ao trabalharem com destinos para desenvolver soluções que aliviam a superlotação e aumentam a sustentabilidade. Estamos comprometidos em reduzir o impacto dos cruzeiros e ainda permitir que nossos passageiros forneçam benefícios que ajudem a sustentar as comunidades”, comenta Ferraz.

Ele conta que os navios aportam apenas em locais autorizados pelas autoridades locais, onde é seguro para as embarcações e outros tráfegos marítimos.

“Temos o dever e o desejo de trabalhar em parceria com diversos destinos para preservar seus patrimônios culturais, históricos e naturais, além de suas características, que é o que os torna únicos”, comenta Ferraz, ressaltando que o setor de cruzeiros está trabalhando em várias parcerias público-privadas, especificamente com portos, em destinos de todo o mundo, para garantir que estes tenham a infraestrutura necessária.

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